Buraco Negro

(...)
DESCOBRI QUE SOU vítima de outra entidade do mundo oculto: o Caboclo Escondedor.
     É ele que faz com que eu não saiba onde meti os óculos, e saia revirando a casa, para descobri-los no alto da cabeça, quando já tendo desistido, me olho no espelho do banheiro para pentear os cabelos. Em compensação não encontro o pente. É ele quem esconde a caneta entre as páginas de um livro, atira o talão de cheques na cesta de papéis, enfia a penca de chaves entre almofadas do sofá.
     Um dia, desesperado à procura de um papel, retiro todas as gavetinhas da secretária, e surpreendo um dos esconderijos do Caboclo Escondedor, verdadeiro ninho de pequenos objetos desaparecidos: meto a mão lá dentro e recolho não só o papel que procurava, mas outros sumidos há muito, recortes de jornal, envelopes amassados, cartões de visita, clipes enferrujados, retratos amarelados, e até uma carteira de sócio do sindicato dos jornalistas.
     Há um código de ética com relação aos desígnios do Caboclo Escondedor: respeite a sua vontade, não insista além do razoável na procura do objeto escondido, e, assim mesmo, só para contentá-lo. Convém não desapontá-lo, abrindo a mão dessa procura. Depois de uma olhadela nos lugares onde o objeto usualmente estaria, solte um suspiro resignado e lance mão de outro - munido que deve estar de um substituto: a réplica das chaves, duplicata dos documentos, dos óculos, da caneta, da tesoura, do relógio. No tempo em que eu fumava, deixava maços de cigarro e isqueiros espalhados pela casa inteira.
     Tão logo suspendemos a busca, tendo resolvido nosso problema com um substituto, o objeto escondido geralmente aparece: bota a cabecinha de fora e, do lugar onde o Caboclo Escondedor o colocou, fica a nos olhar para lhe contar depois como é que nós arranjamos sem ele. 
     Mas se desaparece também o substituto, cuidado! O Caboclo Escondedor não tem mais culpa, pois é sabido que ele só esconde um objeto de cada vez: rendeu-se, ele próprio, a outra entidade mais terrível: o Buraco Negro - por onde desaparecem, no infinito do esquecimento e do nada, os objetos definitivamente perdidos.
     Neste Buraco Negro é que foram parar aqueles brinquedos de infância nunca mais reencontrados; aquele livro sumido para sempre de nossa estante; aquelas cartas que se perderam no porão do olvido, entre trastes inúteis e papéis velhos; especialmente aquele retrato de antigamente, um momento vivido que se apagou para sempre de nossa lembrança.
     Contra o Buraco Negro, por onde nós mesmos um dia seremos sugados, simplesmente não há solução. 

Fernando Sabino

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