O retrato

“(...) 
     Os textos desregrados embora aparentemente cheios de lógica. Aparentemente cheios de lógica - esse o meu engano. Não descobriria ainda que era o contrário que ocorria: a ilogicidade estava só na aparência porque no âmago tudo se desenrolava com a precisão infalível de uma equação matemática. O caos estava na forma da apresentação do problema, não na essência. Caos na pele do homem transformado em inseto, caos nas andanças do inocente transformado em vítima, caos na superfície, nunca no fundo. Como a loucura é que vestia a lucidez, forçosamente os meios tinham que ser exdrúxulas mas sob a falsa demência. A marcha dos acontecimentos se desenrolava dentro de uma lógica implacável, burocrática na sua fatalidade semelhante à marcha de um processo percorrendo os canais competentes.
     Naquela noite, sozinha em casa, com a energia da juventude, cheguei quase a tocar no seu mistério. Anos depois viria a pensar nele com o mesmo fervor enquanto andava nessa cidade de Praga que ele amava e detestava. Lancei um olhar ao rio, anoitecia.
     Ao transpor a ponte, vi que estava perdida. Falei com uma mulher do povo que passou ao meu lado, onde estaria meu hotel? Ela sorriu como uma criança, levantou a mão num tímido adeus e prosseguiu seu caminho. Passou um militar, recorri ao francês, ao inglês: ele abriu os braços, disse alguma coisa amável e desapareceu na esquina, fui andando solitária. Incomunicável como ele queria. Lembrei-me então do seu retrato que guardara dentro de algum livro, junto com um retrato da minha juventude e que também não sabia mais onde podia estar.”

Lygia Fagundes Telles

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