A vida? Essa monstruosidade de irrealidades
A crônica é um verdadeiro martírio para mim, porque de alguma forma tem que se aproximar de um texto "arrumadinho", um texto que todos entendam, você lê pro fedelho, pra Zefa, pro dotô, e todos têm de dizer "óóóó sim! entendi!", mas a verdade é que nada faz sentido, a própria vida é isenta de sentido, pois faz sentido você nascer, crescer, envelhecer e depois apodrecer? O escritor quer mais é esmiuçar os mil atalhos dessa insanidade, e usa na linguagem, todos os possíveis códigos da vida. Se algum físico, por exemplo, for obrigado a explicar pro povão o mundo das partículas, ninguém vai entender, e não há maneira de transformar a linguagem da física em "nóis tamo vendo aqui uma coisa, tamo vendo não, tamo só vendo a caminhada da coisa etc. etc. etc.". A física e a vida têm muito a ver, e as duas andam num salseiro difícil de entender. Você pode entender, na física, uma coisa que entra por dois buracos ao mesmo tempo? E na vida, pode? Ao mesmo tempo não dá, negão. Você pode entender a tal coisa que não é uma coisa, mas que é algo que pula de um lugar pro outro (eles dizem órbita), sem passar pelo espaço intermediário? Como se a bolinha de gude fosse parar de súbito na tua rodela sem se deslocar? Pois essa coisa é o elétron, pessoar! Uma coisa que não é uma coisa e ninguém nunca vê.
E de ambiguidades, de paradoxos, de evasivas, e escorregadia igual à enguia, também a própria vida. Você pensa que tua mulher é um amor, tua criança uma gracinha, no dia seguinte, tá lá você com dois cornos e tua criança estrangulando o gato da vizinha. Dá pra entender o ser humano fazendo tudo pra tudo morrer? Emporcalhando os ares, os rios, os mares, esburacando o ozônio, e só deixando intacto teu ilustre sovaco?
E aquelas "eficientes bombas limpas" que inventaram, tão "eficientes" que destroem toda vida ao redor e deixam intactos os conglomerados de concreto? Dá pra entender a Bósnia? O Brasil? Dá pra entender nossa dívida externa que nunca termina, mas a gente mil vezes já pagou mais de bil? (Atenção, revisão, é bil mesmo, de bilhões.)
Dá pra entender um país desesperado com quase cinquenta por cento de inflação ao mês, com gente faminta, hospitais em agonia, quadrilhas matando crianças (mais de cinco mil de 1988 a 1991), deputado roubando bilhões, um país que mesmo assim "brinca" o carnaval, e o maior tesão do povão continua sendo a bunda e a bola?
Claro, claro, ainda é possível, "ó, não perca as esperanças", como diria o abade, tudo ainda é factível e pode ser surpreendente. Pois não houve um homem que fez de orelhas de porco uma bolsa de seda? Você não acredita? Então leia:
Em 1921 Arthur Dehon Little, um dos fundadores e diretor da Arthur D. Little Inc., decidiu dar uma contribuição à filosofia americana, denunciando um ditado da sabedoria tradicional que ele sentia ser destruído de imaginação. O ditado era: 'Não se pode fazer uma bolsa de seda usando orelha de porco.'
"Primeiramente, comprou quase cinquenta quilos de orelhas de porco de uma companhia de enlatados de Chicago. As orelhas foram reduzidas a uma substância algo parecido com o líquido viscoso produzido pelo bicho-da-seda. Depois, os cientistas da Little diluíram essa substância em água, forçando-a a gelatinar-se com pequenas quantidades de acetona (...)" etc. etc. etc., por aí vai.
A bolsa ficou linda. Está exposta na instituição Smithsonian, em Washington. Se você quiser saber como fazê-la, está no livro Centrais de idéias, de autoria de Paulo Dickinson, Editora Melhoramentos.
Agora pergunto: e será que uma bolsa recheada de dólares pode virar um porco? Taí uma sugestão para os químicos... jovens, naturalmente. Mas, por favor, leitor, não arranque as orelhas dos seus porquinhos se precisar de uma blusa de seda ou de uma bolsinha para o seu carnaval. Bom dia. Engov pra vocês também.
Hilda Hilst
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